Daqui a poucos dias, diremos “sim” ou “não” a um equívoco.
Equívoco, em primeiro lugar, porque já em 1998 o País gastou o debate e o dinheiro necessários e suficientes para produzir conclusões e alguns consensos sociais, inconsequentes, que deveriam ter evitado a ideia de que um referendo é para se repetir ao cabo de pouco mais de 8 anos.
Equívoco desde logo motivado pela negligência de então votantes do “Não”, que nada fizeram para que a actual lei, mesmo considerada insuficiente no campo da justiça social, obtivesse correcções legislativas que a tornassem com maior adesão aos pensamentos dominantes e às vivências dos cidadãos.
Equívoco também pelo prémio que constitui à frieza e ao calculismo de muitos dos votantes do “Sim”, que, apesar de defenderem melhoramentos de políticas e de medidas legais compatíveis com o voto “Não”, preferiram também não tomar qualquer iniciativa que perturbasse a probabilidade de vencerem numa futura repetição do referendo.
Durante e no final da campanha de 1998, ficou claro que todos estavam de acordo relativamente à necessidade de o Estado apostar em políticas de informação e formação, de contemplar o ensino com uma disciplina de Educação Sexual, de investir fortemente em acções práticas de planeamento familiar. Nada ou muito pouco foi feito.
Também em 1998 se abriu um campo de possível consenso quanto à divisão da problemática da legalização do aborto nos dois principais “grupos-alvo” de penalização: as mulheres que abortam e os que lhe facilitam o acto. À semelhança de outras áreas legais, em que um dos elementos da “cadeia da ilegalidade” não é criminalizado, já teria feito todo o sentido encarar a descriminalização das mulheres, mas não necessariamente dos profissionais ou “pseudo-profissionais” responsáveis pela execução do acto. Uns não quiserem propor tais correcções, outros acharam melhor não querer.
Equívoco ainda porque tudo isto resulta em muito do espírito de incumprimento da lei. Boa ou má, a lei cumpre-se num Estado de Direito. Mas o laxismo e a hipocrisia judicial e da sociedade permitiram que as tão faladas práticas clandestinas se instalassem com algum conforto, ao ponto de hoje se pensar que é impossível combatê-las.
Equívoco igualmente pelo facto de a pergunta do referendo ser incorrecta, dando a ideia, por entre requintes eufemísticos, que se responderá apenas pela culpabilidade penal das mulheres abortadoras, fortalecendo argumentos e slogans demagógicos do “Sim”, quando na realidade estamos a falar da legalização do acto de aborto e não somente da penalização de ex-futuras mães.
Mas a “mãe de todos os equívocos” está na obrigação de a sociedade optar entre a liberdade individual de colocar fim à gravidez e a manutenção de difíceis condições de desenvolvimento de filhos por isso indesejados. Tenho para mim que, com real vontade política, competência na acção e algum tempo, o Estado poderia permitir-se encontrar soluções para que uma mulher decida não ter que educar um filho e não ter de o matar.
Não será equívoco algum preocuparmo-nos com os dramas sócio-económicos dos e das que têm meios deficientes, mas logo se dá lugar ao monstruoso equívoco final de se entender que o Estado não tem culpa nem deveres nesses casos, permitindo-lhe que simplesmente financie a morte desse filho, em vez de se responsabilizar pelo seu crescimento e de trabalhar em políticas que evitem o surgimento de gravidezes insustentáveis pelo desejo e pelos meios.
A vitória do “Sim”, a ocorrer como parece provável, não será sobretudo um troféu para as mulheres, ou para a esquerda, ou para os anarquistas ou para os grandes grupos económicos privados da saúde, mas sim para o Estado preguiçoso e remediado.
A lei actual não é justa. A lei que resultará de uma vitória “sim” também não.
Então, se queremos pragmaticamente mudar já algumas injustiças que afectam alguns cidadãos e que não podem ser ultrapassadas de imediato, votamos “Sim”. Se acreditamos que, apesar dos maus exemplos anteriores, a nossa sociedade ainda encontrará melhores formatos de proteger todas as vítimas numa situação de aborto – mulher e filho – então, votamos “Não”.
Eu tenho que recusar o pragmatismo de viver num país de males menores. Prefiro arriscar a utopia de uma sociedade que encontrará a via solidária e as soluções de problemas sociais nas políticas sociais e não nos actos médicos destrutivos.
In "O PRIMEIRO DE JANEIRO", 02/02/2007
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007
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1 comentário:
Muito bem! Realmente são equívocos atrás de equívocos. Ao que a nossa sociedade dita ocidental, se deixou chegar!
Termos que pensar em permitir a livre matança de embriões e de fetos, só pelo facto de compreendermos que há pessoas que não têm boas condições de vida para eles e para elas próprias.
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