É tradicional na nossa cultura usarem-se e fomentarem-se as generalizações. Mas também a tradição, aliada ao bom-senso secular, adverte para o cuidado que se deve ter ao fazer uso das generalizações, porquanto podem não ser correctas as ideias ou designações e, independentemente disso, corre-se o risco de dar origem a dinâmicas de perturbação de todos quantos, apesar de pertencentes a um colectivo “rotulado”, nele se não identificam em vários aspectos ou mesmo quanto ao “rótulo”.
Um dos mais recentes “rótulos” económicos implementados nacionalmente é o de apelidar “tradicionais” indústrias como a têxtil, o vestuário, os curtumes e o calçado, que ainda há pouco mais de uma década, representavam 50% das exportações portuguesas.
Uma certa nova elite de visionários parece até pretender culpar estas indústrias pelas inércias de desenvolvimento económico, ignorando o enorme papel que elas tiveram, e continuam a ter, em muito do que o País tem de positivo.
Cada vez mais, estes sectores são olhados como áreas rudimentares de negócio, cujas actividades e práticas começam a pertencer às memórias do país moderno que pretendemos ser. Ora, nestes pensamentos que vão constantemente alargando a base de apologistas pseudo-convencidos, verifica-se um gigantesco erro, ainda maior do que a ilusão de considerar o nosso País à beira da modernidade: existem numerosas empresas dos referidos sectores, ditos “tradicionais”, que sempre apostaram em factores de competitividade economicamente eficientes e nunca perderam o rumo da qualificação, que se pautam por práticas de gestão ao nível das melhores e que, por isso, mantêm uma solidez económica e uma saúde de negócio que lhes permite continuar a assegurar preciosos empregos e a contribuir decisivamente para a riqueza nacional, independentemente de terem ou não tido alguma quebra no seu ritmo de crescimento ou alguns anos financeiramente menos bons. Na realidade, lidaram e continuarão a lidar, durante algum tempo por certo, com dificuldades conjunturais diferentes de outros sectores e com problemas macroeconómicos que lhes exigiram e exigem mais esforço de revalorização. Por esses factos, muitas empresas encerraram e outras encerrarão certamente, mas convenhamos que as que permanecem em actividade estável e controlada serão provavelmente dos melhores exemplos nacionais de tenacidade, de capacidade de adaptação, e, porque não dizê-lo, de capacidade de inovação e de empreendedorismo.
Será assim legítimo transformar este vocábulo “tradicional” como algo com cariz pejorativo e catalogá-las, a todas elas, como elementos de “sectores de risco”?
Efectivamente, “sector de risco” é a expressão utilizada, todos os dias, com maior ou menor pudor, pelos organismos públicos e pelas políticas governamentais, pela banca e pelos restantes agentes financeiros, pelos académicos seminaristas e outros opinion-makers cujo universo de análise se restringe aos elementos estatísticos e à bibliografia internética. Acrescentando, portanto, ao já de si inconveniente rótulo de “tradicional”, uma nova generalização ainda mais discutível e nefasta – “sector de risco”.
Dito de outra forma, e rectificando o “pecado” da minha própria generalização, não significa que, presentemente, uma empresa têxtil não possa colher apoio de programas públicos a um projecto de investimento seu, mas, para tal, ele terá certamente que ser muito melhor que um projecto apresentado por uma empresa informática. Será eventualmente possível que uma empresa de confecção de vestuário ou de calçado veja aprovado um satisfatório plano de financiamento por parte de um banco comercial, mas, para que na prática isso suceda, os seus indicadores económicos e as contas dos últimos exercícios deverão ser muito mais positivos do que se se tratasse de uma empresa de formação profissional.
Embora se esteja progressivamente a instalar a ideia de que os negócios mais confiáveis se situam em áreas como a dos serviços ou a das tecnologias de informação, todo o discurso que recomenda a inovação, a investigação e desenvolvimento, a ciência aplicada ou as novas tecnologias é tão aplicável às “indústrias tradicionais” como a outra qualquer indústria ou área de actividade, e é na realidade adoptado por numerosas empresas da ITV ou do calçado, pelo que seria arrogância considerá-lo exclusivos das empresas que se movem na “nova economia”.
Estes “carimbos” e generalizações são efectivamente perigosos e perturbam inevitavelmente os que vão conseguindo contrariar as dificuldades em comum. Há 20 anos, falávamos da agricultura como o nosso principal “sector de risco”, sem ter havido a capacidade de individualizar ou de sub-sectorializar. Hoje verificamos que a fruticultura, os cereais e outras culturas de regadio fracassaram, mas o sub-sector dos vinhos prospera e a agricultura biológica desponta com boas perspectivas. Não porque tenham existido políticas de apoio selectivo, mas porque esses sub-sectores resistiram melhor pelo facto se identificarem intrinsecamente com o nosso valioso know-how tradicional, que acabou por funcionar como uma decisiva vantagem competitiva angariada geracionalmente. Daqui a 20 anos, decerto contaremos com uma indústria têxtil menos extensa, mas provavelmente seremos dos melhores do mundo no sub-sector das malhas, com várias empresas a operar com sucesso nesta área, pois aí detemos um capital histórico de conhecimento que nos distingue do de outros países que mais recentemente enveredaram pela mesma via. Assim já previa o economista americano Michael Porter, há 20 anos – apostar nos vinhos dentro da agricultura, nas malhas dentro da indústria têxtil.
Mas caso não haja a sensibilidade e a competência para distinguir sub-sectores e outros pequenos universos dentro dos sectores de actividade, que pelo menos se diminuam as falácias generalistas, deixando-se de empregar tão facilmente expressões como a de “sectores de risco”. Aliás, o mero bom-senso dever-nos-ia transmitir que, muito mais do que sectores, existirão empresas ou empresários de risco.
In "O PRIMEIRO DE JANEIRO", 27/04/2007
terça-feira, 29 de maio de 2007
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