domingo, 11 de novembro de 2007

Bem Tratado


Glória à Europa pelo acordo encontrado, louvor à diplomacia portuguesa por dele tão bem ter tratado!
Parece óbvio que este pensamento é consensual nos corredores da burocracia europeia. Pelo menos, assim tem sido relatado. Quanto ao chamado cidadão comum, talvez tenha dada a mesma importância aos épicos trabalhos de Sócrates, Amado, Lobo Antunes e seus séquitos quanto deu à prestação da amadora selecção de râguebi no recente campeonato do mundo.

A Europa vive há muito tempo na perseguição da utopia de se poder formar como massa política tão uniforme como os Estados Unidos, a China ou o Japão. Apaixona-se pelo sonho de fomentar um espírito europeu único, como se essa coisa da língua, da profunda cultura histórica ou dos mais simples costume quotidianos, tão distintos entre eslavos e latinos, ou até entre portugueses e espanhóis, sejam fundidos por um mero tratado, com nome de constitucional ou sem ele.
Por muito “contra-a-corrente” que me arrisque a ser, tenho para mim que este tratado não possui assim tanto de mérito, de método e de oportunidade.
De mérito desde logo porque a maioria das questões acordadas pelos Chefes de Estado e de Governo eram matérias pacíficas e desprovidas de polémica, por muito que se engrandeça a trabalho das diplomacias portuguesa e alemã, com aplausos aos intensos trabalhos de bastidores. Não vejo sinceramente tanta dificuldade num consenso em torno da definição da eleição de um Presidente da Comissão por 2 anos e meio, mesmo que se alegue que agora somos 27 e não 15. Ou que pudesse ser assim tão difícil que todos estivessem de acordo sobre a designação de uma espécie de Ministro dos Negócios Estrangeiros da UE. Fica então o mérito do “porreiro, pá” para o deslindar da questão italiana, que não queria ter menos um deputado que o Reino Unido, só ultrapassada pela grande visão estratégica da presidência portuguesa, que resolveu não contando com o lugar de presidente do Parlamento Europeu para as contas dos deputados! Fantástico e soberbo, diriam certamente Descartes, Einstein ou Sócrates (o grego). Enfim, existia ainda o delicado tema polaco, cuja cúpula familiar fazia questão de bater o pé para poder levar uma vitória internacional nas eleições de três dias depois. Engoliu-se a exigência polaca, e o caso acabou resolvido, já que não era possível, pelos vistos, fazer a cimeira uma semana depois, quando era mais do que previsível que o partido governamental fosse substituído por um outro menos caprichoso, com de facto veio a definir-se.
Depois existe a questão do método – chamar-lhe Tratado Europeu pela simples retirada da palavra “Constitucional”, da supressão da bandeira na segunda página (quando ela continua hasteada em todos os lugares onde já estava) e da referência ao Hino da Alegria como a música oficial da pátria europeia, para além de 3 pares de artigos filosófico-jurídicos de tom ligeiro e inofensivo. E pronto, aprova-se com 27 votos de Chefes de Estado e de Governo, quando milhões de franceses e holandeses o recusaram sem aquelas rectificações e não disseram nessas consultas populares que só não gostavam do hino, da bandeira e de algumas palavras como “constituição”! Depois ainda se coloca em dúvida se, mesmo nos países que tinham planeado ratificar o tratado por referendo, ele possa não se realizar. Estas questões terão que forçosamente nos fazer interrogar sobre a dignidade com que os políticos, neste caso da Pátria Europeia, tratam os seus concidadãos. Com que critério se submetem matérias a referendo? Ou bem que confiamos em quem elegemos por voto universal, directo e secreto, sujeitando-os apenas a novos julgamentos nos mesmos termos, e assim dispensamos referendos, ou então devemos ser todos nós, eleitores, a poder definir quais são as matérias que devem ser referendadas. Para não corremos o risco, pelo menos, de que nos consultem apenas quando se queira “sacudir a água do capote”, ou que, como no caso em concreto se meta pela janela o que não passou pela porta.
Por fim, coloca-se talvez ainda a questão da oportunidade. É agradável pensarmos que o Tratado vai ser conhecido como “de Lisboa” e que, por isso até, veio no tempo certo. Mas irá esta Europa, com este tratado, ainda a tempo de construir algo de politicamente tão relevante que a faça distinguir-se no plano da decisão mundial? Basta talvez olharmos para o ano em que os novos mecanismos de aprovação de votos irá ter lugar para que se nos levante tal interrogação – 2014. Aí vamos ter um novo sistema de apuramento da expressão da maioria no seio da Europa-27 que irá agilizar o processo de decisão da UE e colocar-nos assim quase em pé de igualdade com os EUA. Os grandes problemas desta frase são o “quase”, pois os Estados Unidos nunca precisarão de duplas maiorias e desvios a possíveis bloqueios temporais: basta-lhes o Presidente, ou em certas matérias o Presidente e o Congresso, para que uma decisão seja tomada. A outra grande diferença é que já o fazem agora, e nós só poderemos ter esse esquema mais simplificado e ágil daqui por 7 anos. Durante esse tempo, muita coisa mudará no mundo, muitas decisões ágeis vão precisar de ser tomadas. Por exemplo, nesse período, veremos provavelmente confirmar-se o insucesso da Agenda de Lisboa, aprovada no consulado Guterres, e que previa a liderança económica europeia até ao final da década, o que está muito longe de poder suceder.
Oxalá o Tratado só tenha em comum o nome da cidade e não venha a ter a mesma sorte que a Agenda.

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