sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Alea jacta est

Os dados estão lançados. A campanha acabou.
Muitos dos argumentos foram gastos até à exaustão. Outros nem tanto.

Tenho para mim que a campanha do "sim" foi melhor. Foi sobretudo mais concisa na retórica.

Do lado do "não", exibiu-se um maior leque argumentativo, mas alguns pontos nem foram focados e outros pouco aprofundados. Por exemplo:

- Se falamos de uma questão de consciência e de liberdade individuais, deveríamos ter presente que a liberdade só se pode aplicar numa sociedade justa, equilibrada e democrática, até ao preciso ponto em que essa mesma liberdade interfere negativamente com a liberdade de outros. Aqui, os "outros" são sobretudo os filhos (chamemos embriões, fetos, projectos de vida em evolução ou seres humanos em potencial), que sabemos, por natureza, naturalidade ou instinto, optariam por viver se pudessem a tal responder.

- A mudança que o "sim" presumivelmente conseguirá legislar assenta no facto de se entender que é impossível acabar com a prática dos abortos clandestinos. Ou seja, é impossível evitar que haja mulheres que queiram abortar e é impossível evitar que as práticas ilegais de abortamento se façam no nosso país. Concordo com o diagnóstico. Concordo que, a curto prazo, isso é incontornável, embora admita que, a médio-longo prazo, o Estado deveria trabalhar no sentido de mudar essa inevitabilidade e que conseguiria resultados, se a isso estivesse disposto.
Mas será que esse entendimento geral, de que não se conseguem evitar os abortos clandestinos em dois dias, não resulta do facto de a lei nunca ter sido efectivamente aplicada com rigor, induzindo no espírito de todos e das próprias mulheres de que o acto de abortamento não é grave e criando algum facilitismo contraceptivo, sabendo-se de antemão que há sempre essa solução à posteriori, que até nem é mal vista pela justiça e pela sociedade, apesar de a lei ter um texto diferente?
Conforme temos a nossa sociedade e a nossa justiça, esta lei realmente não funciona. Chegamos a um ponto de "não retorno", que obrigará a modificar alguma coisa. Mas ficaremos sempre com a dúvida se a falha foi por culpa da lei ou por culpa da sua aplicação.
É um verdadeiro perigo para uma democracia e para um Estado de Direito facilitar no cumprimento de uma lei, tolerando a sua desobediência, ao ponto de se encarar a mudança dessa lei pelo facto de ela não ser obedecida! Não cometamos mais erros deste tipo. As leis devem ser bem apreciadas, mas a partir do momento em que entram em vigor, têm de ser aplicadas. Sem facilitismos, sem tolerâncias.

- A liberdade de uma mulher grávida não querer educar um filho poderia até ser-lhe oferecida sem restrições desde que ela se comprometesse a terminar a gestação intra-uterina, única parte da vida da criança que não pode ser ajudada por outra pessoa. Se a lei proibisse terminantemente as grávidas de abortarem, com tolerância zero na sua aplicação, mas lhes desse total liberdade de manterem a criança após o nascimento ou entregá-las ao Estado, quais seriam os grandes problemas e os graves erros dessa hipótese?
O simples facto de as mulheres não poderem ser "barrigas de aluguer" ou essa contrariedade é mais grave do que matar um ser humano em evolução? E pode-se chamar "aluguer forçado" a uma gravidez consentida mesmo pelo descuido ou pelo azar?
Será que o grande problema estaria na probabilidade de a mãe se arrepender, quando o filho já estivesse a cargo de outros, e reclamar o direito de maternidade biológica? Será que o maior trabalho que assim teria a Justiça não se justifica perante o que está em jogo?
Estará também o problema nas dificuldades psicológicas dessas mães "arrependidas", ou incomodadas com a decisão que tiveram de entregar a criança, que poderão "transpirar" ao se recordarem que existe no mundo um filho seu que rejeitaram? Será que esse desconforto é mais valioso do que o erro de deitar um feto no caixote do lixo e do esquecimento?
Terá efectivamente legitimidade o argumento de que é mais grave uma criança crescer sem a mãe biológica, quando tem como hipóteses o próprio pai ou pais adoptivos, antes de instituições sociais (que as há muito boas), do que simplesmente impedi-la de viver?
Haverá quem ache mesmo que o aborto clandestino se manteria com a mesma dimensão nessas circunstâncias, ou não será bem mais provável que ele baixasse significativamente, em primeiro lugar, pelo facto de se criarem mais condições de responsabilização para menos gravidezes indesejadas, e, por outro lado, porque a própria justiça deixaria de ter as mesmas razões de tolerância/ displicência, ao ter permitido uma "escapatória" à mãe que ela não quis utilizar?
Ficaria assim tão grave manter a penalização e os possíveis julgamentos de mulheres que abortam depois de lhes ser permitido libertarem-se da criança ao nascer, tendo elas recusado a nobre mas reduzida tarefa de as trazer à luz do dia?
Será que, por muito graves que sejam os cenários sócio-económicos de uma mulher com gravidez indesejada, alguém possa pensar que não haverá condições razoavelmente viáveis para que ela suporte a gravidez por mais 5, 6 ou 7 meses? Não seria uma solução legítima para "desmascarar" todos os abortamentos por simples conveniência, protegendo simultaneamente as dificuldades das gravidezes menos sustentáveis por razões sócio-económicas?

Apesar de aparentemente "radical", penso que seria uma solução equilibrada. Permitiria a defesa dos grandes problemas dos dois agentes principais desta problemática - mãe e filho. Viveriam e sobreviveriam ambos com dignidade.
Adicionalmente, permitiria ao pai optar pela responsabilização sobre o filho, caso a mãe o negasse.
Nos casos em que estes não oferecessem solução, permitiria satisfazer muito mais as pretensões de pais adoptantes com meios materiais e afectivos capazes.
Desta forma sim, ainda se contribuiria positivamente para o défice circunstancial de natalidade.
A "ameaça" de que haveria necessidade de gerar o filho até ao fim da gravidez, e de que os agentes da lei e da justiça seriam implacáveis na sua vigilância, funcionaria certamente como um eficaz meio "contraceptivo" de responsabilização adicional que, por si mesmo, evitaria gravidezes não planeadas.
Por último e mais importante que tudo, daria azo a que uma percentagem muito elevada de mães mudassem de opinião ao longo da gravidez e ficassem com as crianças, em vez de as entregarem.

2 comentários:

Anónimo disse...

pois, pois, e as meninas iam deixar de recorrer ao aborto clandestino com essa solução mágica?

Anónimo disse...

e, nessa altura, todas seriam julgadas como prevê a lei actual, condenadas, presas..