segunda-feira, 25 de junho de 2007

PORTUGAL LÁ LONGE...



Cerca de 800 km tem Portugal Continental, desde as fronteiras do Alto Minho até à costa algarvia. Cerca de 800 km separam também a ilha açoriana mais próxima do Continente, Santa Maria, e aquela que mais distante fica, o Corvo, essa “enorme rocha” de 19 km2, que surge nos mapas televisivos do boletim meteorológico como um simples ponto a norte da “gigante” ilha das Flores. O Corvo está a mais de 2000 km da cidade do Porto e a quase um dia de avião. No Portugal de hoje, é o lugar mais distante da sua capital.
Recentemente, “acampei” no Corvo durante uma semana. Tempo suficiente para conhecer quase todos os menos de 400 habitantes da ilha e alguns dos “imigrantes” que lá estão destacados.
Numa primeira impressão, senti-me numa pequena aldeia transmontana, isolada, por alturas dos anos 70. A ilha não tem farmácia, mas um pequeno posto de medicamentos. Precisei de um mero xarope, cerca das 16.30h, tinha já o posto encerrado meia-hora antes. Por assunto tão pequeno, não iria fazer um telefonema de urgência para o número afixado. Mas alguém, ao ver-me plantado na porta fechada, de imediato alertou a funcionária dos serviços públicos do outro lado da rua, que fez uma chamada para o responsável do posto, apesar dos meus insistentes avisos de que poderia bem esperar pelo dia seguinte. Passados pouco mais de 10 minutos, foi-me vendido o xarope e oferecido um pedido de desculpas pela demora, pois o “farmacêutico” estava no meio de uma operação de soldadura, num trabalho em prol dos festejos pascais da ilha. O ar ofegante e as galochas nem o deixavam mentir. E eu senti-me pior do que se não tivesse tomado o xarope…
Mas a este perfume do Portugal hospitaleiro e generoso, no seu mais elevado grau, juntam-se um sem número de outras situações que poderiam bem servir de lição a quem sinta dificuldades de viver em comunidade ou a quem nelas possa interferir positivamente.
Por exemplo, como não há transportes públicos, as deslocações de quem não tem veículo são todas feitas “à boleia” ou em carro emprestado. Eu conduzi a carrinha de um continental que, por aquela época, tinha voado para rever a família, e não me conhecia de lado algum.
Peixe também não se compra. Pesca-se e come-se, ou pesca-se e oferece-se aos outros da ilha. Enfim, há peixe que se pesca e se vende para o Continente.
Aqui exactamente deixamos a aldeia portuguesa dos anos 70 e entramos nas peripécias de um território da União Europeia do século XXI. O peixe é leiloado na lota a representantes locais de compradores de outras ilhas ou de continentais. Nas conversas de café (porque os três cafés do Corvo substituem os jornais da ilha), diz-se à boca cheia que há “interesses cruzados” entre a venda na lota e as reservas de carga nos poucos aviões que de lá descolam. Parece um sinal de evolução. E, se assim for, já me sinto num Portugal mais “avançado”. Também “leio” nesse “jornal” que já houve edil que conseguiu permissão de construção da sua casa em lindo sopé da protegida costa. De facto, o local é tanto de fazer inveja, como é de intrigante a sua viabilidade ambiental. Mas precisamente por poder provocar fácil inveja e porque não me sinto no mínimo direito, nem no dever, de mergulhar em tema tal, prescindi de formar um completo juízo próprio. Mas recolhi talvez mais um sinal do país moderno. Ao lado destes e de outros “assuntos de Estado” para os corvinos, e, tanto mais, depois de se ter visto Nicholas Sarkozy mais recentemente na cimeira do G-8, o alegado estado ébrio frequente de um dos mais altos responsáveis políticos da ilha não passará de um mero fait-divers.

Prefiro naturalmente o Corvo que me apareceu à porta da “farmácia”. Ou o Corvo que, apesar de ficar quase tão perto da Terra Nova canadiana como da nossa costa continental, não deixa escapar uma única notícia importante do Continente, quando muitas delas passam completamente despercebidas a tantos habitantes dos subúrbios das grandes cidades. E é muito reconfortante encontrar no Corvo, aquele pedaço de rocha com 19 km2 que brotou mesmo no meio do Atlântico, uma das mais baixas taxas de analfabetismo de todo o País.

Um dia mais tarde, quem sabe, poderei voltar a ver o Corvo. Se isso acontecer de facto, não irei movido pela ideia de verificar se a casa construída nas rochas cresceu ou se desfez. Não me entusiasmará particularmente confirmar se o “check-in” do peixe é mesmo feito a partir da lota. Nem muito menos entrarei com um “teste do balão” no edifício da Câmara Municipal.
Mas muito gostaria de voltar a ver que ainda se pesca para se dar ao vizinho. Que ainda se emprestam os automóveis a quem mal ou nada se conhece, e se continuam a deixar sempre as chaves na fechadura da ignição. Que se mantém o hábito de gastar tanto tempo em gratuitos trabalhos necessários ao colectivo, como na própria profissão, ou na vida pessoal. Que, mesmo que não haja farmácia nem farmacêutico, se continua a não deixar ninguém sem medicamento.

Esse é justamente o Portugal de que mais me orgulho. E que afinal ainda existe…
No Corvo.

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