quinta-feira, 29 de junho de 2006

Uma causa chama Selecção

Provavelmente, uma boa parte do nosso País encontra-se temporariamente a cumprir os serviços mínimos por efeito do Campeonato Mundial de Futebol. Os telejornais investem metade da emissão entre as peripécias dos treinos da selecção, os mais escandalosos erros de arbitragem e o tipo de sobremesa que cada jogador português desejou para o almoço desse dia. Na rua ou no trabalho, os temas que predominantemente se anexam aos cumprimentos de bom-dia pouco diferem da problemática esquematização do meio-campo a adoptar amanhã frente à Inglaterra ou, mais entusiasticamente, que jogadores nacionais poderão ou não estar castigados nas meias-finais e na final. Nove em cada dez restaurantes, bares e cafés escolheram dois nobres metros quadrados junto ao televisor para fazerem brilhar a bandeira rubro-verde, não vão os clientes se esquecer do actual desígnio da nação e se distraírem demasiado com outro tipo de acontecimentos.

Se Portugal vivesse presentemente com um nível de conforto sócio-económico e financeiro como o da Dinamarca ou o da Suiça, toda esta euforia reinante não apenas seria compreensível, como até desejável. Nas circunstâncias em que nos encontramos, tal cenário é realmente compreensível mas dramático. E o drama advém, por exemplo, de que alguns se alheiam consciente e propositadamente das profundas dificuldades em que se movem, pelo facto de dificilmente encontrarem outra área de interesse nas suas vidas que lhes permita um retorno de emoções tão positivo como aquele que lhes gera esta coisa do futebol. Outros o fazem sem propósito e sem consciência, o que também não encerra uma dose inferior de dramatismo.
Comprar o jornal para ler as últimas evoluções das lesões dos nossos craques ou planear com os amigos o visionamento do próximo jogo de Portugal fazem parte das principais preocupações com que muitos concidadãos convivem nos últimos dias. Depois, há aquelas incontornáveis tarefas que cada um se encarrega de executar em benefício da selecção, como vestir-se no próximo jogo com a mesma roupa de Domingo passado para “dar sorte”, telefonar para o programa de rádio alertando o espírito colectivo para o que funcionou menos bem na última partida ou simplesmente verificar se a bandeira continua bem colocada na janela. Parece não haver muitas dúvidas de que o êxito da selecção de futebol não tem concorrência com qualquer outra grande causa nacional.
Felizmente que tem sido possível Portugal jogar ao fim-de-semana, se excluirmos a partida frente ao México, que já não despertava a mesma crucialidade das restantes. Para bem das taxas de absentismo laboral e das responsabilidades quotidianas de cada um, até nisso Scolari tem sido meticuloso e bem sucedido. Não se limitou a conseguir diminuir a ansiedade curiosa no jogo da matinée contra os mexicanos, como fez questão de nele assegurar uma posição que lhe permitisse disputar os quartos-de-final a um Sábado, evitando hoje às 16 horas, como sucederia se tivéssemos que defrontar a Alemanha, depois de eliminada a Argentina. Teria sido terrível verificar a quantidade de baixas médicas e outras ausências mais ou menos justificadas se a selecção enfrentasse tão importante desafio numa 6.a feira à tarde.
Contra factos não há argumentos: os resultados de Scolari são admiráveis.
Começou por conceber a exibição mais adequada e o resultado mais diplomático possível no primeiro jogo contra Angola. Sem dar um “show de bola” nem uma goleada que induziria a frustração e condicionaria o estado de espírito dos nossos irmãos africanos. Além disso, era conveniente manter todos os críticos com um discurso aceso, pois o espírito de grupo precisava ainda de ser reforçado. Já contra o Irão, teve que ser diferente, pois não existia motivação política, religiosa ou de outra qualquer natureza que impedisse de se apresentar um resultado final mais esclarecedor e uma qualidade futebolística de alto nível. Pelas razões já invocadas, mais a necessidade de Angola se não lamentar de não termos feito a nossa parte para os apurar, o Portugal-México teria que acabar como acabou, com uma parte bem jogada e outra de paupérrima exibição. Não se cale totalmente a crítica, que há que manter o grupo unido. E como a crítica quase se calou, fomente-se o espírito guerreiro diante dos holandeses, pois isto de ser só elogiado não desperta totalmente a alma combatente.
Por tudo isso, não restam dúvidas: Scolari é um bom treinador. E como possui uma excelente equipa, esperamos mesmo que a leve a um muito bom resultado, de modo a minimamente compensar todo o esforço que os portugueses têm feito para ajudar a selecção, mesmo que só lhes tenha sido possível exibir a bandeira, ligar para a rádio ou escolher a roupa do bom agoiro.
Oxalá um dia se consiga, no trabalho e nos demais espaços de actividade colectiva, dedicar a outras causas nacionais metade do entusiasmo que temos oferecido a esta, provavelmente com proveitos bem mais consequentes.
Ou faltarão às outras causas treinadores assim tão rigorosos e guerreiros?